terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Capítulo 2

Mamãe tem o estranho costume de me chamar de egoísta. É algo que eu ouço desde o início da minha adolescência, época que minha memória consegue alcançar com certa clareza. Durante anos esta crítica não me fazia mal nenhum, mesmo ganhando um coro de mais vozes, além da sagrada voz materna. Mas ultimamente é algo que me tem feito parar para pensar um pouquinho. Eu considero o egoísmo uma característica natural da espécie humana, variando em intensidade entre uns e outros. Mas todos somos egoístas.

E foi do alto de todo o meu egoísmo que eu disse algumas frases que a deixaram assustada, logo quando nos conhecemos. Pra mim, o maior filósofo, pensador, didata que eu conheço sou eu. Reconheço: é algo forte de ser dito e soa extremamente prepotente aos ouvidos desavisados.

Eu tive a sorte de ter acesso ao trabalho de pensadores interessantes, de filósofos (pensadores etiquetados) relevantes e de professores instigantes. E do alto de todo o meu altruísmo, digo com convicção que grande parte deles teve uma participação importantíssima na construção de minhas convicções. Acontece que o que tem valor de fato não é o que eles escrevem ou lecionam, mas sim a minha compreensão disto. Na verdade, a minha, a sua, a deles. No meu caso, minha. Egoísta, não?!

Ela não conseguiu entender o que pra mim é muito simples. Num bar, em certa ocasião, após umas, outras e mais outras, conversávamos sobre identificação. Tentávamos entender os porquês de nos identificarmos com certas coisas e não com outras. Porque adoramos certa música e odiamos outra. Porque preferimos o conceito de Fulano sobre o destino ao conceito de Cicrano. Porque acreditamos em Deus do pai nosso ou num deus só nosso. E o mais importante disto tudo: Por que eu adoro azul e você lilás? Eu tenho uma boa hipótese sobre isto e não foi nenhum filósofo/pensador/professor/filme/música/passarinho que me disse. Não explicitamente. A explicação é simples: Nos identificamos com aquilo que nos soa familiar.

Ah, mas aí é mole. Nos identificamos com nossas mulheres porque elas têm características em comum com nossas mães. Isto é manjado. Freud explica.

Ok, mas por que nos identificamos tanto com aquela frase muito breve dita por aquele ator naquele filme que mudou nossa vida e nossa maneira de pensar e nos fez pensar: Porra! Como é que eu nunca pensei nisso antes? Na verdade, já pensei nisso antes, mas nunca havia me dado conta disto. Talvez tenha pensado há 2 anos, há 10 anos, 2 minutos antes de nascer ou quando eu era uma artesã em uma cidadezinha na região que hoje é conhecida por Praga. Vai saber. Mas eu me identifico porque isto está na minha memória, na minha genética, nos meus registros, no meu banco de dados, no meu arquivo pessoal. Chame como quiser.

E o mais intrigante é que talvez esta minha explicação sobre identificação não faça o menor sentido para você, assim como não fez para ela naquela mesa de bar. Mas acredito que isto aconteça porque isto não está na sua memória, genética, no seu registro etc etc etc... E mesmo que você não gaste um segundo do seu pensamento para tentar entendê-la, talvez ela faça todo o sentido para você e para ela se eu repeti-la daqui a 2 ou 10 anos. Talvez daqui a 2 minutos. O importante é que eu deixei o meu conceito no seu registro. Sou egoísta como os filósofos.

Gostaria, mais do que tudo, de ter a oportunidade de dizê-la novamente, exatamente com as mesmas palavras, tudo o que eu penso sobre identificação e ver se desta vez ela entenderia. E ouvi-la dizer, mais uma vez, Você é um grande egoísta, de uma forma tênue e carinhosa, como só mamãe saberia dizer.


PS: Eu descobri que um certo alemão chamado Heidegger pensava muito parecido comigo. Talvez ele já tenho trocado uma idéia com a minha bisavó.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Capítulo 1

O recado na secretária eletrônica era, no mínimo, inusitado. Uma voz mais branda do que a última vez que a ouvi me convidava para conhecer sua nova sala escura, construída no antigo cômodo de empregados da simpática casa em que morava.

De forma surpreendente seu gosto pela fotografia evoluíra, nos últimos 5 anos, do auto-retrato ego-exibicionista para um trabalho minimamente dotado de um valor artístico. Valor artístico na minha visão, é claro. O fato é que da última vez que a vi, percebi um certo esforço dela para transmitir verdade naquilo que clicava. Era um esforço tão dedicado, quase infantil, de transformar seu trabalho, seu início de trabalho, em algo significante, nem que fosse para ela. Melhor ainda se fosse para ela e pra mim. E este esforço tornava a verdade de suas fotos em uma verdade forçada, uma naturalidade artificial, uma casualidade milimetricamente programada.

A verdade é que não sou nenhum grande entendedor de arte, muito menos de fotografia. As minhas referências estéticas não tem nada a ver com montanhas de livros, nem com horas e horas passeando por galerias. O que me serve de parâmetro artístico é minha percepção sobre a verdade que o artista transmitiu à obra. Aquilo que nós humanos preferimos definir como algo que vem do coração, mas que ultrapassa em muito o significado de um impulso que sai de um órgão que palpita insensivelmente. A verdade de uma obra é a presença do que o artista sentia, via, experimentava em seu momento de inspiração, exatamente da forma como ele sentia, via, experimentava. É difícil explicar como sentimos e como medimos isso, mas eu sinto e eu meço. E não me vejo como um iluminado. Acho que todos vêem e medem, mas alguns não percebem.

Os últimos trabalhos dela que vi transmitiam um ar de “fingi que vi”. Pareciam tecnicamente interessantes e eram indiscutivelmente belos. Alguns coloridos, perfeitamente revelados, outros em preto e branco. Mas não era a verdade crua, o que ficava ainda mais evidente pra mim, que a conhecia.

Marcamos uma sexta-feira à noite para o encontro. O fato dela construir uma sala escura em sua casa me causava grande satisfação, pois demonstrava o quanto ela estava se dedicando e o quanto acreditava em seu trabalho. Ela sempre foi verdadeira à fotografia. A fotografia nunca foi verdadeira à ela.

A pequena sala de estar, conjugada à uma cozinha americana, virou um pequeno espaço de exposição. Fiquei surpreso com o jogo de cores e luzes que ela criou no ambiente, para dar evidência aos principais aspectos das fotos. Algo muito bem planejado e com um resultado absolutamente agradável. Com uma voz repleta de orgulho, ela disse uma frase que continha uma palavra que me agrada os ouvidos como poucas: “estou virando uma boa auto-didata”. E este orgulho tinha uma causa importante. No início de seu trabalho, fui enfático ao dizer: “Estudar, muitos estudam. Portanto, o diferencial do artista não é o estudo, é a verdade. Talvez o grande charme esteja em não estudar e fazer da forma mais natural possível. Para os que tem dom, será uma arte bela. Para os que não tem, será uma mensagem verdadeira, o que é tão belo quanto a arte.”

E a prática insistente durante 5 anos transpareceu uma evolução gritante. Do auto-retrato para a verdade forçada, para a quase verdade, passando pela verdade, chegando à bela verdade. Ela fotografa a sua verdade de forma bela porque o que vê é belo. A evolução, portanto, não está em sua fotografia, mas em sua visão. Não é lindo?!

Me ofereceu um copo de mate gelado para espantar o calor do verão e desceu a escada para seu novo cômodo no sub-solo. Eu caminhava ao longo da sala, contemplando a maturidade de seu trabalho, imaginando como aquele jogo de luzes funcionaria à luz do sol. Ouvi sua voz me chamando lá de baixo e senti aquela apreensão que não se explica, aquele nervosismo infantil diante de uma situação que seria absolutamente natural há alguns anos.

Ao pisar o último degrau da escada, percebi o calor quase insuportável da sala escura e me perguntei como uma pessoa conseguia trabalhar ali. Passei o olho pelo varal, pelas tinas, por uma longa bancada de madeira que corria por três quartos da largura do cômodo. Tudo isso tingido pelo vermelho típico dos ambientes de revelação analógica. Recostada na bancada, estava ela, apenas com a pele do corpo, com o cabelo moreno parcialmente molhado pelo suor que lhe escorria por todo o corpo. O suor era fruto não só do calor do ambiente, mas de seu pânico diante daquela situação. Eu a conheço e sei que ela estava com um pavor irremediável da minha reação diante de sua atitude. Alguns julgamentos me passaram pela cabeça no espaço de poucos segundos. É uma armadilha; Ela continua exibicionista; Ela está me testando.

A luz vermelha varreu minha enxurrada de julgamentos e carregou meu olhar para aquele corpo tingido de um coral molhado, reluzente. Era impressionante como aquele ambiente me remetia ao tradicional conceito de inferno da sociedade ocidental. Calor, fogo, vermelho, suor e um olhar provocante em tons de escarlate. No momento, me questionei como pode alguém julgar a luxúria como um pecado, atribuir a ela uma conotação negativa. Não há sentimento mais nobre, belo, prazeroso, verdadeiro, artístico; portanto divino; do que a luxúria. Mas esta questão logo me fugiu à mente em virtude daquela cena única que estava presenciando. Não foi preciso que ela dissesse nada para que eu me aproximasse e sentisse o calor de sua respiração irracional e de minha respiração que rebatia em seu corpo e naquela atmosfera vermelha.

Nenhuma fotografia no mundo consegue captar o significado de um toque em um corpo rubro, ensopado de suor, nem a troca de olhares rubros dentro do “inferno”. Mas é uma pena que ela não tenha sido capaz de fotografar as horas que passamos ali dentro. Seria a verdade mais bela que ela poderia clicar ao longo de toda a sua vida. O efeito natural da lente da câmera embaçada seria merecedor de prêmios internacionais.