Existem algumas dezenas de testes que medem a intensidade de uso de nossos hemisférios cerebrais. O mais simples e intrigante deles consiste num retângulo em tons de verde e amarelo, no qual você vê uma determinada imagem de acordo com a predominância de um de seus hemisférios cerebrais: Se o hemisfério direito é predominante, você vê nitidamente setas apontando para o lado esquerdo. Naturalmente, se o esquerdo é predominante, vê-se setas para o lado direito. Simples e muito sintomático. O hemisfério direito é – grosso modo – responsável pelas emoções, pelos dons artísticos, pelo choro. O esquerdo – por seu lado – domina a razão, a lógica, a organização, o resultado do dois mais dois.
Enquanto ela calcula minuciosamente o jogo de luzes da sala para realçar os detalhes de suas fotos e arquiva as fotos não expostas em pastas classificadas por tema, eu guardo letras de músicas, melodias inacabadas, acordes inventados – a maioria deles escritos em guardanapos de bar, papéis de jornal ou revista – numa pasta azul bem surrada jogada no canto do quarto. Com o passar dos anos, os papéis vão ficando amarelados. Nos últimos meses, ela me convidou pelo menos umas cinco vezes para organizar minha bagunça.
- Pra mim, está tudo organizado.
- No dia em que você dedicar um mês a isto, vai poder viver disto como sempre sonhou.
Não é a primeira vez que ouço isto. Não é a última que vou duvidar.
Ela dava um sorrisinho sem graça quando escutava repetidas vezes de um velho amigo: “Você é um talento construído pelo esforço. Ele é um talento desperdiçado pela displicência. Na verdade, ela ficava puta ao ouvir isso. Eu também. E consentia com outro sorrisinho amarelo de quem se finge de encabulado.
Certa vez resolvemos pintar uma tela juntos. Optamos pela pintura por ser uma manifestação artística neutra. Nem eu nem ela dominamos. Dividimos a tela retangular em duas partes. A da direita era minha, a da esquerda dela. Diariamente, durante mais ou menos um mês, entrávamos no estúdio improvisado no terraço para pintar. Às vezes mais de uma vez ao dia. Firmamos o pacto de cobrir a metade do outro da tela enquanto pintávamos, e mesmo com a curiosidade nos remoendo durante todo o mês, seguimos à risca nossa própria regra. Pelos menos eu segui. E acredito que ela também tenha seguido.
Todo dia eu vasculhava na minha pequena bagunça e escolhia aleatoriamente um texto que havia escrito. Passava boa parte do dia conversando com ela sobre o assunto do texto e subia para pintar algo relacionado a ele, a meu jeito. Ao mau jeito. No fim do trabalho, eu conseguia ver nitidamente, apesar da minha total falta de talento para a pintura, a referência de cada um dos textos. Era um emaranhado de formas abstratas e tentativas de pequenos desenhos que, forçando a barra, formavam uma história. Pra mim formavam uma história.
Nessa época, antes de dormir, ficávamos brincando de atiçar a curiosidade sobre o que estávamos pintando. Isso fazia muito mais efeito nela do que em mim. No meio da noite, enquanto ela dormia, eu pegava o texto do dia seguinte e lia baixinho no ouvido dela, com a cabeça recostada no travesseiro. A melhor sensação do mundo era vê-la sorrindo vez ou outra. Não sei se sorria da história ou só por ouvir minha voz. Ambas as possibilidades me encantam de verdade.
Marcamos um encontro em casa com alguns bons amigos para exibirmos nossa obra conjunta, que já causava um certo burburinho por comentários que fazíamos em mesas de bar. Depois de umas e outras e outras, para que todo mundo visse a tela com outros olhos, anunciamos que iríamos finalmente revelar nossa tela conjunta. Talvez a primeira na história da humanidade, o que é improvável. Foi, no mínimo, engraçada a cara de surpresa de todos quando contamos até três e puxamos os panos que cobriam a(s) tela(s). A primeira frase foi dela:
- Nossa senhora! Que coisa horrível!
Logo em seguida vieram todos os outros comentários de reprovação. Eu preferi ficar calado, mesmo diante da irritante insistência de todos. Eu sei que todos eles, inclusive ela, repararam as lágrimas que insistentemente se estacionavam em meus olhos. Eu não consigo esconder as lágrimas.
O que ninguém sabe nem percebeu, talvez nem ela, é que eu vi que ela pintou, à sua forma -inda, detalhista, colorida, luminosa, suave, curvilínea, enfim – sobre os textos que eu li enquanto ela dormia. E sorria. Provavelmente ela mesmo nunca se deu conta disso.
Até hoje ela não sabe que eu amei a obra e que a tiro de cima do armário todo dia. E que choro cada vez, sem exceção, que a vejo. E ela também não sabe que dei um nome à obra.
Chama-se Pseudomini.
- Pra mim, está tudo organizado.
- No dia em que você dedicar um mês a isto, vai poder viver disto como sempre sonhou.
Não é a primeira vez que ouço isto. Não é a última que vou duvidar.
Ela dava um sorrisinho sem graça quando escutava repetidas vezes de um velho amigo: “Você é um talento construído pelo esforço. Ele é um talento desperdiçado pela displicência. Na verdade, ela ficava puta ao ouvir isso. Eu também. E consentia com outro sorrisinho amarelo de quem se finge de encabulado.
Certa vez resolvemos pintar uma tela juntos. Optamos pela pintura por ser uma manifestação artística neutra. Nem eu nem ela dominamos. Dividimos a tela retangular em duas partes. A da direita era minha, a da esquerda dela. Diariamente, durante mais ou menos um mês, entrávamos no estúdio improvisado no terraço para pintar. Às vezes mais de uma vez ao dia. Firmamos o pacto de cobrir a metade do outro da tela enquanto pintávamos, e mesmo com a curiosidade nos remoendo durante todo o mês, seguimos à risca nossa própria regra. Pelos menos eu segui. E acredito que ela também tenha seguido.
Todo dia eu vasculhava na minha pequena bagunça e escolhia aleatoriamente um texto que havia escrito. Passava boa parte do dia conversando com ela sobre o assunto do texto e subia para pintar algo relacionado a ele, a meu jeito. Ao mau jeito. No fim do trabalho, eu conseguia ver nitidamente, apesar da minha total falta de talento para a pintura, a referência de cada um dos textos. Era um emaranhado de formas abstratas e tentativas de pequenos desenhos que, forçando a barra, formavam uma história. Pra mim formavam uma história.
Nessa época, antes de dormir, ficávamos brincando de atiçar a curiosidade sobre o que estávamos pintando. Isso fazia muito mais efeito nela do que em mim. No meio da noite, enquanto ela dormia, eu pegava o texto do dia seguinte e lia baixinho no ouvido dela, com a cabeça recostada no travesseiro. A melhor sensação do mundo era vê-la sorrindo vez ou outra. Não sei se sorria da história ou só por ouvir minha voz. Ambas as possibilidades me encantam de verdade.
Marcamos um encontro em casa com alguns bons amigos para exibirmos nossa obra conjunta, que já causava um certo burburinho por comentários que fazíamos em mesas de bar. Depois de umas e outras e outras, para que todo mundo visse a tela com outros olhos, anunciamos que iríamos finalmente revelar nossa tela conjunta. Talvez a primeira na história da humanidade, o que é improvável. Foi, no mínimo, engraçada a cara de surpresa de todos quando contamos até três e puxamos os panos que cobriam a(s) tela(s). A primeira frase foi dela:
- Nossa senhora! Que coisa horrível!
Logo em seguida vieram todos os outros comentários de reprovação. Eu preferi ficar calado, mesmo diante da irritante insistência de todos. Eu sei que todos eles, inclusive ela, repararam as lágrimas que insistentemente se estacionavam em meus olhos. Eu não consigo esconder as lágrimas.
O que ninguém sabe nem percebeu, talvez nem ela, é que eu vi que ela pintou, à sua forma -inda, detalhista, colorida, luminosa, suave, curvilínea, enfim – sobre os textos que eu li enquanto ela dormia. E sorria. Provavelmente ela mesmo nunca se deu conta disso.
Até hoje ela não sabe que eu amei a obra e que a tiro de cima do armário todo dia. E que choro cada vez, sem exceção, que a vejo. E ela também não sabe que dei um nome à obra.
Chama-se Pseudomini.