terça-feira, 28 de abril de 2009

Capítulo 5


Existem algumas dezenas de testes que medem a intensidade de uso de nossos hemisférios cerebrais. O mais simples e intrigante deles consiste num retângulo em tons de verde e amarelo, no qual você vê uma determinada imagem de acordo com a predominância de um de seus hemisférios cerebrais: Se o hemisfério direito é predominante, você vê nitidamente setas apontando para o lado esquerdo. Naturalmente, se o esquerdo é predominante, vê-se setas para o lado direito. Simples e muito sintomático. O hemisfério direito é – grosso modo – responsável pelas emoções, pelos dons artísticos, pelo choro. O esquerdo – por seu lado – domina a razão, a lógica, a organização, o resultado do dois mais dois.

Enquanto ela calcula minuciosamente o jogo de luzes da sala para realçar os detalhes de suas fotos e arquiva as fotos não expostas em pastas classificadas por tema, eu guardo letras de músicas, melodias inacabadas, acordes inventados – a maioria deles escritos em guardanapos de bar, papéis de jornal ou revista – numa pasta azul bem surrada jogada no canto do quarto. Com o passar dos anos, os papéis vão ficando amarelados. Nos últimos meses, ela me convidou pelo menos umas cinco vezes para organizar minha bagunça.

- Pra mim, está tudo organizado.
- No dia em que você dedicar um mês a isto, vai poder viver disto como sempre sonhou.
Não é a primeira vez que ouço isto. Não é a última que vou duvidar.

Ela dava um sorrisinho sem graça quando escutava repetidas vezes de um velho amigo: “Você é um talento construído pelo esforço. Ele é um talento desperdiçado pela displicência. Na verdade, ela ficava puta ao ouvir isso. Eu também. E consentia com outro sorrisinho amarelo de quem se finge de encabulado.

Certa vez resolvemos pintar uma tela juntos. Optamos pela pintura por ser uma manifestação artística neutra. Nem eu nem ela dominamos. Dividimos a tela retangular em duas partes. A da direita era minha, a da esquerda dela. Diariamente, durante mais ou menos um mês, entrávamos no estúdio improvisado no terraço para pintar. Às vezes mais de uma vez ao dia. Firmamos o pacto de cobrir a metade do outro da tela enquanto pintávamos, e mesmo com a curiosidade nos remoendo durante todo o mês, seguimos à risca nossa própria regra. Pelos menos eu segui. E acredito que ela também tenha seguido.

Todo dia eu vasculhava na minha pequena bagunça e escolhia aleatoriamente um texto que havia escrito. Passava boa parte do dia conversando com ela sobre o assunto do texto e subia para pintar algo relacionado a ele, a meu jeito. Ao mau jeito. No fim do trabalho, eu conseguia ver nitidamente, apesar da minha total falta de talento para a pintura, a referência de cada um dos textos. Era um emaranhado de formas abstratas e tentativas de pequenos desenhos que, forçando a barra, formavam uma história. Pra mim formavam uma história.

Nessa época, antes de dormir, ficávamos brincando de atiçar a curiosidade sobre o que estávamos pintando. Isso fazia muito mais efeito nela do que em mim. No meio da noite, enquanto ela dormia, eu pegava o texto do dia seguinte e lia baixinho no ouvido dela, com a cabeça recostada no travesseiro. A melhor sensação do mundo era vê-la sorrindo vez ou outra. Não sei se sorria da história ou só por ouvir minha voz. Ambas as possibilidades me encantam de verdade.

Marcamos um encontro em casa com alguns bons amigos para exibirmos nossa obra conjunta, que já causava um certo burburinho por comentários que fazíamos em mesas de bar. Depois de umas e outras e outras, para que todo mundo visse a tela com outros olhos, anunciamos que iríamos finalmente revelar nossa tela conjunta. Talvez a primeira na história da humanidade, o que é improvável. Foi, no mínimo, engraçada a cara de surpresa de todos quando contamos até três e puxamos os panos que cobriam a(s) tela(s). A primeira frase foi dela:

- Nossa senhora! Que coisa horrível!

Logo em seguida vieram todos os outros comentários de reprovação. Eu preferi ficar calado, mesmo diante da irritante insistência de todos. Eu sei que todos eles, inclusive ela, repararam as lágrimas que insistentemente se estacionavam em meus olhos. Eu não consigo esconder as lágrimas.

O que ninguém sabe nem percebeu, talvez nem ela, é que eu vi que ela pintou, à sua forma -inda, detalhista, colorida, luminosa, suave, curvilínea, enfim – sobre os textos que eu li enquanto ela dormia. E sorria. Provavelmente ela mesmo nunca se deu conta disso.

Até hoje ela não sabe que eu amei a obra e que a tiro de cima do armário todo dia. E que choro cada vez, sem exceção, que a vejo. E ela também não sabe que dei um nome à obra.

Chama-se Pseudomini.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Capítulo 4

Um certo filósofo, certa vez, utilizou o termo “experiência preexistente” para descrever um conceito muito simples: Quando você nasce e abre os olhos, já tem plena consciência de que o mundo é mundo. E eu fico espantado com o quanto eu concordo com alguns filósofos e discordo dos mesmos filósofos que eu concordo. Ou concordava.

Foi bom, como sempre é bom, acordar sem barulho de despertador, sem ser forçado a acordar. É como se fosse um parto normal, no qual ninguém te impõe a hora de nascer. Quem nasce de parto normal toma plena consciência de que o mundo é mundo antes de nascer. E quando nasce deve pensar: “Ah... então é isso que é o tal do mundo.”. Eu nasci de cesariana, odeio ser acordado, e talvez não tenha tomado plena consciência do mundo antes de nascer. Minha experiência preexistente foi interrompida prematuramente. Uma pena. Às vezes eu desejo ter um pouco mais de consciência do mundo.

Neste dia, por acaso, eu fui acordado. Mas não odiei, porque fui acordado como num parto normal. Já teve seu sonho bom repentinamente interrompido? Você passa uns 10 segundos ou uns 15 minutos sem identificar muito bem o que é sonho e o que é realidade. A sua experiência preexistente não é concluída antes de você acordar. Mas neste dia, o que o torna um dia histórico foi o fato de eu ter acordado por um gesto que fez com que meu sonho continuasse. Não sei se estava sonhando com o que ia acontecer ou acontecendo com o que ia sonhar. Só sei que o gesto que me acordou era o gesto com o qual eu sonhava naquele exato momento.

Um certo filósofo grego, há pouco mileniozinhos atrás, falava – dentre outros milharezinhos de coisas – da eterna oposição humana entre racionalidade e sensibilidade. “Oposição” é modo de dizer, porque a razão deste tal filósofo baixava o cacete em sua emoção todo santo dia pela manhã. Eu, filósofo que não sou, prefiro falar em equilíbrio entre racionalidade e sensibilidade. Preferia.

De olho fechado, eu via (e não é um cliché poético) as listras amareladas na parede oposta do quarto, causadas pela persiana que barrava o solzinho da manhã e davam um colorido diferente às fotografias expostas por todo o quarto. Num primeiro momento, achei o efeito feio. Fotos metade claras, metade escuras. Nada parecido com o louvável jogo de luz da noite anterior. Mas por acaso atentei para a foto da menina recém-nascida fazendo careta diante de uma flor. A luz iluminava a flor e escurecia o bebê. Na foto intitulada “medo do cão”, o cão que pulava quase sorridente era iluminado, enquanto o senhor à sua frente, em total pavor, dava um passo desajeitado para trás na penumbra da persiana. Não devia ser por acaso.

Entretido neste jogo de luz e sombra, percebi a mão muito leve que repousava sobre minha barba. Ainda concentrado nas fotos, fui sentindo um peso maior da mão escorregando lentamente sobre meu pescoço e peito, até descansar um pouco acima do meu umbigo.

- Bom dia.

A vista que tinha de olhos fechados era exatamente a mesma que contemplei logo ao abri-los. O que vi ao olhar pro lado era algo que não poderia ver nos sonhos bons: Aquele sorriso levemente coberto pelo cabelo todo bagunçado.

O sorriso se transformou em espanto quando saltei da cama de joelhos e escancarei as persianas. Ela ia perguntar algo quando foi subitamente interrompida:

- Já que a luz ilumina o sensível e deixa à sombra o racional, façamos amor no claro. Muito claro!

A princípio, ela achou que eu ainda estava sonhando, mas logo percebeu que eu acabara de concluir minha experiência preexistente.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Capítulo 3

De repente, num passo, o pé direito ficou mais leve que o esquerdo. Bem mais leve. E à medida que eu caminhava, um pé ficava mais leve que o outro. Até que os dois ficaram leves demais. Mas eu não voei, porque eu não sei voar. Pelo menos não com os pés. Ao contrário, eu caí exatamente no momento em que o corpo ficou tão leve quanto o pé esquerdo, que estava – naquele momento – mais leve que o direito.

Todo ser humano sofre. Na verdade, todo ser vivo sofre. Mas o ser humano sofre em dobro, porque inventou a palavra “sofrimento” para designar um negócio chamado sofrimento. O jovem indiano que apanha todo dia de seus colegas de escola e já foi vítima de todo o tipo de doença, a última delas a leucemia, sofre. Ou sofria. A menina quase rica que deseja trocar seu Fiat Punto por uma BMW e recebe um não de seu pai sofre. Eu sofro por meus motivos, que estão muito mais próximos da futilidade da menina do que da leucemia do pequeno indiano. Mas nós 3, em algum momento, tomamos consciência de que estamos sofrendo. E isso nos faz sofrer mais.

Um peixinho dourado, blasé, dentro de um aquário, por motivos desconhecidos, deve sofrer ao longo dos seus meses de vida. E quando sofre, dentro de seu sistema nervoso desconhecido, ele deve “pensar”: glub! E sua vida segue menos sofrida até que ele tenha um outro motivo desconhecido para sofrer e o resolva com um outro glub.

Há alguns poucos anos atrás ela deixou, acidentalmente, um cachecol verde jogado em cima da minha cama. Nunca mais voltou para buscá-lo. E eu nunca a avisei que o cachecol havia ficado em casa, mesmo depois de ter devolvido tudo mais dela que havia por aqui, acidentalmente. A única coisa não acidental nessa história toda foi o fato de eu não ter devolvido, até hoje, o bendito cachecol.

Há alguns meses a gente estava sem ver e sem se falar. A última vez que nos falamos não trazia boas lembranças, nem pra mim, nem pra ela, nem para as testemunhas. E num domingo acidental, tomando café da manhã na padaria, batendo um papo acidental com o Cido, o balconista, ela passou acidentalmente pela calçada, com um fone de ouvido e um sorriso daqueles que não são momentâneos. Um daqueles sorrisos de quem está feliz. Eu sou capaz de descrever exatamente cada peça de roupa que ela estava usando naquele momento, bem como seus óculos e seus brincos, só com a memória dos quatro ou cinco acidentais segundos sobre os quais ela desfilou sobre a calçada estreita da padaria. Mas prefiro não fazê-lo, para não despertar a consciência humana do sofrimento. Passei alguns segundos paralisado no banco, debruçado no balcão, tomando cada vez mais consciência da palavra sofrimento. Fui interrompido pelo Cido, que acidentalmente perguntava se eu queria mais um pingado, enquanto pingava água salgada no balcão.

O cachecol eu deixei guardado na última gaveta do meu armário, sob uma enorme pilha de roupas que eu não uso e nunca vou usar. Em alguns segundos, todas elas estavam jogadas no chão, enquanto o cachecol repousava sobre a minha mão, leve como o sofrimento. Talvez a maior besteira que eu tenha feito nos últimos anos foi tê-lo trazido para perto do nariz para saber se ainda conseguiria sentir o cheiro dela. Nesse momento eu desejei ser um pequeno indiano, apanhar todos os dias e sofrer de leucemia.

Um passo após o outro, cada vez mais leve. A minha consciência do sofrimento sugava todas as energias do meu corpo e fazia meu caminhar quase levantar vôo. Mas o peso na cabeça me impedia de sair do chão e me empurrava cada vez mais para baixo. Temia que meus pés fracos não sustentassem este peso. Num último esforço besta de tentar retomar a força do corpo e aliviar o peso da cabeça, eu pensei: Glub! E desabei, sem consciência de sofrimento nem de coisa alguma.

Penso que temos muito a aprender com os peixinhos.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Capítulo 2

Mamãe tem o estranho costume de me chamar de egoísta. É algo que eu ouço desde o início da minha adolescência, época que minha memória consegue alcançar com certa clareza. Durante anos esta crítica não me fazia mal nenhum, mesmo ganhando um coro de mais vozes, além da sagrada voz materna. Mas ultimamente é algo que me tem feito parar para pensar um pouquinho. Eu considero o egoísmo uma característica natural da espécie humana, variando em intensidade entre uns e outros. Mas todos somos egoístas.

E foi do alto de todo o meu egoísmo que eu disse algumas frases que a deixaram assustada, logo quando nos conhecemos. Pra mim, o maior filósofo, pensador, didata que eu conheço sou eu. Reconheço: é algo forte de ser dito e soa extremamente prepotente aos ouvidos desavisados.

Eu tive a sorte de ter acesso ao trabalho de pensadores interessantes, de filósofos (pensadores etiquetados) relevantes e de professores instigantes. E do alto de todo o meu altruísmo, digo com convicção que grande parte deles teve uma participação importantíssima na construção de minhas convicções. Acontece que o que tem valor de fato não é o que eles escrevem ou lecionam, mas sim a minha compreensão disto. Na verdade, a minha, a sua, a deles. No meu caso, minha. Egoísta, não?!

Ela não conseguiu entender o que pra mim é muito simples. Num bar, em certa ocasião, após umas, outras e mais outras, conversávamos sobre identificação. Tentávamos entender os porquês de nos identificarmos com certas coisas e não com outras. Porque adoramos certa música e odiamos outra. Porque preferimos o conceito de Fulano sobre o destino ao conceito de Cicrano. Porque acreditamos em Deus do pai nosso ou num deus só nosso. E o mais importante disto tudo: Por que eu adoro azul e você lilás? Eu tenho uma boa hipótese sobre isto e não foi nenhum filósofo/pensador/professor/filme/música/passarinho que me disse. Não explicitamente. A explicação é simples: Nos identificamos com aquilo que nos soa familiar.

Ah, mas aí é mole. Nos identificamos com nossas mulheres porque elas têm características em comum com nossas mães. Isto é manjado. Freud explica.

Ok, mas por que nos identificamos tanto com aquela frase muito breve dita por aquele ator naquele filme que mudou nossa vida e nossa maneira de pensar e nos fez pensar: Porra! Como é que eu nunca pensei nisso antes? Na verdade, já pensei nisso antes, mas nunca havia me dado conta disto. Talvez tenha pensado há 2 anos, há 10 anos, 2 minutos antes de nascer ou quando eu era uma artesã em uma cidadezinha na região que hoje é conhecida por Praga. Vai saber. Mas eu me identifico porque isto está na minha memória, na minha genética, nos meus registros, no meu banco de dados, no meu arquivo pessoal. Chame como quiser.

E o mais intrigante é que talvez esta minha explicação sobre identificação não faça o menor sentido para você, assim como não fez para ela naquela mesa de bar. Mas acredito que isto aconteça porque isto não está na sua memória, genética, no seu registro etc etc etc... E mesmo que você não gaste um segundo do seu pensamento para tentar entendê-la, talvez ela faça todo o sentido para você e para ela se eu repeti-la daqui a 2 ou 10 anos. Talvez daqui a 2 minutos. O importante é que eu deixei o meu conceito no seu registro. Sou egoísta como os filósofos.

Gostaria, mais do que tudo, de ter a oportunidade de dizê-la novamente, exatamente com as mesmas palavras, tudo o que eu penso sobre identificação e ver se desta vez ela entenderia. E ouvi-la dizer, mais uma vez, Você é um grande egoísta, de uma forma tênue e carinhosa, como só mamãe saberia dizer.


PS: Eu descobri que um certo alemão chamado Heidegger pensava muito parecido comigo. Talvez ele já tenho trocado uma idéia com a minha bisavó.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Capítulo 1

O recado na secretária eletrônica era, no mínimo, inusitado. Uma voz mais branda do que a última vez que a ouvi me convidava para conhecer sua nova sala escura, construída no antigo cômodo de empregados da simpática casa em que morava.

De forma surpreendente seu gosto pela fotografia evoluíra, nos últimos 5 anos, do auto-retrato ego-exibicionista para um trabalho minimamente dotado de um valor artístico. Valor artístico na minha visão, é claro. O fato é que da última vez que a vi, percebi um certo esforço dela para transmitir verdade naquilo que clicava. Era um esforço tão dedicado, quase infantil, de transformar seu trabalho, seu início de trabalho, em algo significante, nem que fosse para ela. Melhor ainda se fosse para ela e pra mim. E este esforço tornava a verdade de suas fotos em uma verdade forçada, uma naturalidade artificial, uma casualidade milimetricamente programada.

A verdade é que não sou nenhum grande entendedor de arte, muito menos de fotografia. As minhas referências estéticas não tem nada a ver com montanhas de livros, nem com horas e horas passeando por galerias. O que me serve de parâmetro artístico é minha percepção sobre a verdade que o artista transmitiu à obra. Aquilo que nós humanos preferimos definir como algo que vem do coração, mas que ultrapassa em muito o significado de um impulso que sai de um órgão que palpita insensivelmente. A verdade de uma obra é a presença do que o artista sentia, via, experimentava em seu momento de inspiração, exatamente da forma como ele sentia, via, experimentava. É difícil explicar como sentimos e como medimos isso, mas eu sinto e eu meço. E não me vejo como um iluminado. Acho que todos vêem e medem, mas alguns não percebem.

Os últimos trabalhos dela que vi transmitiam um ar de “fingi que vi”. Pareciam tecnicamente interessantes e eram indiscutivelmente belos. Alguns coloridos, perfeitamente revelados, outros em preto e branco. Mas não era a verdade crua, o que ficava ainda mais evidente pra mim, que a conhecia.

Marcamos uma sexta-feira à noite para o encontro. O fato dela construir uma sala escura em sua casa me causava grande satisfação, pois demonstrava o quanto ela estava se dedicando e o quanto acreditava em seu trabalho. Ela sempre foi verdadeira à fotografia. A fotografia nunca foi verdadeira à ela.

A pequena sala de estar, conjugada à uma cozinha americana, virou um pequeno espaço de exposição. Fiquei surpreso com o jogo de cores e luzes que ela criou no ambiente, para dar evidência aos principais aspectos das fotos. Algo muito bem planejado e com um resultado absolutamente agradável. Com uma voz repleta de orgulho, ela disse uma frase que continha uma palavra que me agrada os ouvidos como poucas: “estou virando uma boa auto-didata”. E este orgulho tinha uma causa importante. No início de seu trabalho, fui enfático ao dizer: “Estudar, muitos estudam. Portanto, o diferencial do artista não é o estudo, é a verdade. Talvez o grande charme esteja em não estudar e fazer da forma mais natural possível. Para os que tem dom, será uma arte bela. Para os que não tem, será uma mensagem verdadeira, o que é tão belo quanto a arte.”

E a prática insistente durante 5 anos transpareceu uma evolução gritante. Do auto-retrato para a verdade forçada, para a quase verdade, passando pela verdade, chegando à bela verdade. Ela fotografa a sua verdade de forma bela porque o que vê é belo. A evolução, portanto, não está em sua fotografia, mas em sua visão. Não é lindo?!

Me ofereceu um copo de mate gelado para espantar o calor do verão e desceu a escada para seu novo cômodo no sub-solo. Eu caminhava ao longo da sala, contemplando a maturidade de seu trabalho, imaginando como aquele jogo de luzes funcionaria à luz do sol. Ouvi sua voz me chamando lá de baixo e senti aquela apreensão que não se explica, aquele nervosismo infantil diante de uma situação que seria absolutamente natural há alguns anos.

Ao pisar o último degrau da escada, percebi o calor quase insuportável da sala escura e me perguntei como uma pessoa conseguia trabalhar ali. Passei o olho pelo varal, pelas tinas, por uma longa bancada de madeira que corria por três quartos da largura do cômodo. Tudo isso tingido pelo vermelho típico dos ambientes de revelação analógica. Recostada na bancada, estava ela, apenas com a pele do corpo, com o cabelo moreno parcialmente molhado pelo suor que lhe escorria por todo o corpo. O suor era fruto não só do calor do ambiente, mas de seu pânico diante daquela situação. Eu a conheço e sei que ela estava com um pavor irremediável da minha reação diante de sua atitude. Alguns julgamentos me passaram pela cabeça no espaço de poucos segundos. É uma armadilha; Ela continua exibicionista; Ela está me testando.

A luz vermelha varreu minha enxurrada de julgamentos e carregou meu olhar para aquele corpo tingido de um coral molhado, reluzente. Era impressionante como aquele ambiente me remetia ao tradicional conceito de inferno da sociedade ocidental. Calor, fogo, vermelho, suor e um olhar provocante em tons de escarlate. No momento, me questionei como pode alguém julgar a luxúria como um pecado, atribuir a ela uma conotação negativa. Não há sentimento mais nobre, belo, prazeroso, verdadeiro, artístico; portanto divino; do que a luxúria. Mas esta questão logo me fugiu à mente em virtude daquela cena única que estava presenciando. Não foi preciso que ela dissesse nada para que eu me aproximasse e sentisse o calor de sua respiração irracional e de minha respiração que rebatia em seu corpo e naquela atmosfera vermelha.

Nenhuma fotografia no mundo consegue captar o significado de um toque em um corpo rubro, ensopado de suor, nem a troca de olhares rubros dentro do “inferno”. Mas é uma pena que ela não tenha sido capaz de fotografar as horas que passamos ali dentro. Seria a verdade mais bela que ela poderia clicar ao longo de toda a sua vida. O efeito natural da lente da câmera embaçada seria merecedor de prêmios internacionais.