Um certo filósofo, certa vez, utilizou o termo “experiência preexistente” para descrever um conceito muito simples: Quando você nasce e abre os olhos, já tem plena consciência de que o mundo é mundo. E eu fico espantado com o quanto eu concordo com alguns filósofos e discordo dos mesmos filósofos que eu concordo. Ou concordava.
Foi bom, como sempre é bom, acordar sem barulho de despertador, sem ser forçado a acordar. É como se fosse um parto normal, no qual ninguém te impõe a hora de nascer. Quem nasce de parto normal toma plena consciência de que o mundo é mundo antes de nascer. E quando nasce deve pensar: “Ah... então é isso que é o tal do mundo.”. Eu nasci de cesariana, odeio ser acordado, e talvez não tenha tomado plena consciência do mundo antes de nascer. Minha experiência preexistente foi interrompida prematuramente. Uma pena. Às vezes eu desejo ter um pouco mais de consciência do mundo.
Neste dia, por acaso, eu fui acordado. Mas não odiei, porque fui acordado como num parto normal. Já teve seu sonho bom repentinamente interrompido? Você passa uns 10 segundos ou uns 15 minutos sem identificar muito bem o que é sonho e o que é realidade. A sua experiência preexistente não é concluída antes de você acordar. Mas neste dia, o que o torna um dia histórico foi o fato de eu ter acordado por um gesto que fez com que meu sonho continuasse. Não sei se estava sonhando com o que ia acontecer ou acontecendo com o que ia sonhar. Só sei que o gesto que me acordou era o gesto com o qual eu sonhava naquele exato momento.
Um certo filósofo grego, há pouco mileniozinhos atrás, falava – dentre outros milharezinhos de coisas – da eterna oposição humana entre racionalidade e sensibilidade. “Oposição” é modo de dizer, porque a razão deste tal filósofo baixava o cacete em sua emoção todo santo dia pela manhã. Eu, filósofo que não sou, prefiro falar em equilíbrio entre racionalidade e sensibilidade. Preferia.
De olho fechado, eu via (e não é um cliché poético) as listras amareladas na parede oposta do quarto, causadas pela persiana que barrava o solzinho da manhã e davam um colorido diferente às fotografias expostas por todo o quarto. Num primeiro momento, achei o efeito feio. Fotos metade claras, metade escuras. Nada parecido com o louvável jogo de luz da noite anterior. Mas por acaso atentei para a foto da menina recém-nascida fazendo careta diante de uma flor. A luz iluminava a flor e escurecia o bebê. Na foto intitulada “medo do cão”, o cão que pulava quase sorridente era iluminado, enquanto o senhor à sua frente, em total pavor, dava um passo desajeitado para trás na penumbra da persiana. Não devia ser por acaso.
Entretido neste jogo de luz e sombra, percebi a mão muito leve que repousava sobre minha barba. Ainda concentrado nas fotos, fui sentindo um peso maior da mão escorregando lentamente sobre meu pescoço e peito, até descansar um pouco acima do meu umbigo.
- Bom dia.
A vista que tinha de olhos fechados era exatamente a mesma que contemplei logo ao abri-los. O que vi ao olhar pro lado era algo que não poderia ver nos sonhos bons: Aquele sorriso levemente coberto pelo cabelo todo bagunçado.
O sorriso se transformou em espanto quando saltei da cama de joelhos e escancarei as persianas. Ela ia perguntar algo quando foi subitamente interrompida:
- Já que a luz ilumina o sensível e deixa à sombra o racional, façamos amor no claro. Muito claro!
A princípio, ela achou que eu ainda estava sonhando, mas logo percebeu que eu acabara de concluir minha experiência preexistente.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Pronto! Agora tenho um favorito!
ResponderExcluirBranca