De repente, num passo, o pé direito ficou mais leve que o esquerdo. Bem mais leve. E à medida que eu caminhava, um pé ficava mais leve que o outro. Até que os dois ficaram leves demais. Mas eu não voei, porque eu não sei voar. Pelo menos não com os pés. Ao contrário, eu caí exatamente no momento em que o corpo ficou tão leve quanto o pé esquerdo, que estava – naquele momento – mais leve que o direito.
Todo ser humano sofre. Na verdade, todo ser vivo sofre. Mas o ser humano sofre em dobro, porque inventou a palavra “sofrimento” para designar um negócio chamado sofrimento. O jovem indiano que apanha todo dia de seus colegas de escola e já foi vítima de todo o tipo de doença, a última delas a leucemia, sofre. Ou sofria. A menina quase rica que deseja trocar seu Fiat Punto por uma BMW e recebe um não de seu pai sofre. Eu sofro por meus motivos, que estão muito mais próximos da futilidade da menina do que da leucemia do pequeno indiano. Mas nós 3, em algum momento, tomamos consciência de que estamos sofrendo. E isso nos faz sofrer mais.
Um peixinho dourado, blasé, dentro de um aquário, por motivos desconhecidos, deve sofrer ao longo dos seus meses de vida. E quando sofre, dentro de seu sistema nervoso desconhecido, ele deve “pensar”: glub! E sua vida segue menos sofrida até que ele tenha um outro motivo desconhecido para sofrer e o resolva com um outro glub.
Há alguns poucos anos atrás ela deixou, acidentalmente, um cachecol verde jogado em cima da minha cama. Nunca mais voltou para buscá-lo. E eu nunca a avisei que o cachecol havia ficado em casa, mesmo depois de ter devolvido tudo mais dela que havia por aqui, acidentalmente. A única coisa não acidental nessa história toda foi o fato de eu não ter devolvido, até hoje, o bendito cachecol.
Há alguns meses a gente estava sem ver e sem se falar. A última vez que nos falamos não trazia boas lembranças, nem pra mim, nem pra ela, nem para as testemunhas. E num domingo acidental, tomando café da manhã na padaria, batendo um papo acidental com o Cido, o balconista, ela passou acidentalmente pela calçada, com um fone de ouvido e um sorriso daqueles que não são momentâneos. Um daqueles sorrisos de quem está feliz. Eu sou capaz de descrever exatamente cada peça de roupa que ela estava usando naquele momento, bem como seus óculos e seus brincos, só com a memória dos quatro ou cinco acidentais segundos sobre os quais ela desfilou sobre a calçada estreita da padaria. Mas prefiro não fazê-lo, para não despertar a consciência humana do sofrimento. Passei alguns segundos paralisado no banco, debruçado no balcão, tomando cada vez mais consciência da palavra sofrimento. Fui interrompido pelo Cido, que acidentalmente perguntava se eu queria mais um pingado, enquanto pingava água salgada no balcão.
O cachecol eu deixei guardado na última gaveta do meu armário, sob uma enorme pilha de roupas que eu não uso e nunca vou usar. Em alguns segundos, todas elas estavam jogadas no chão, enquanto o cachecol repousava sobre a minha mão, leve como o sofrimento. Talvez a maior besteira que eu tenha feito nos últimos anos foi tê-lo trazido para perto do nariz para saber se ainda conseguiria sentir o cheiro dela. Nesse momento eu desejei ser um pequeno indiano, apanhar todos os dias e sofrer de leucemia.
Um passo após o outro, cada vez mais leve. A minha consciência do sofrimento sugava todas as energias do meu corpo e fazia meu caminhar quase levantar vôo. Mas o peso na cabeça me impedia de sair do chão e me empurrava cada vez mais para baixo. Temia que meus pés fracos não sustentassem este peso. Num último esforço besta de tentar retomar a força do corpo e aliviar o peso da cabeça, eu pensei: Glub! E desabei, sem consciência de sofrimento nem de coisa alguma.
Penso que temos muito a aprender com os peixinhos.
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