sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Capítulo 1

O recado na secretária eletrônica era, no mínimo, inusitado. Uma voz mais branda do que a última vez que a ouvi me convidava para conhecer sua nova sala escura, construída no antigo cômodo de empregados da simpática casa em que morava.

De forma surpreendente seu gosto pela fotografia evoluíra, nos últimos 5 anos, do auto-retrato ego-exibicionista para um trabalho minimamente dotado de um valor artístico. Valor artístico na minha visão, é claro. O fato é que da última vez que a vi, percebi um certo esforço dela para transmitir verdade naquilo que clicava. Era um esforço tão dedicado, quase infantil, de transformar seu trabalho, seu início de trabalho, em algo significante, nem que fosse para ela. Melhor ainda se fosse para ela e pra mim. E este esforço tornava a verdade de suas fotos em uma verdade forçada, uma naturalidade artificial, uma casualidade milimetricamente programada.

A verdade é que não sou nenhum grande entendedor de arte, muito menos de fotografia. As minhas referências estéticas não tem nada a ver com montanhas de livros, nem com horas e horas passeando por galerias. O que me serve de parâmetro artístico é minha percepção sobre a verdade que o artista transmitiu à obra. Aquilo que nós humanos preferimos definir como algo que vem do coração, mas que ultrapassa em muito o significado de um impulso que sai de um órgão que palpita insensivelmente. A verdade de uma obra é a presença do que o artista sentia, via, experimentava em seu momento de inspiração, exatamente da forma como ele sentia, via, experimentava. É difícil explicar como sentimos e como medimos isso, mas eu sinto e eu meço. E não me vejo como um iluminado. Acho que todos vêem e medem, mas alguns não percebem.

Os últimos trabalhos dela que vi transmitiam um ar de “fingi que vi”. Pareciam tecnicamente interessantes e eram indiscutivelmente belos. Alguns coloridos, perfeitamente revelados, outros em preto e branco. Mas não era a verdade crua, o que ficava ainda mais evidente pra mim, que a conhecia.

Marcamos uma sexta-feira à noite para o encontro. O fato dela construir uma sala escura em sua casa me causava grande satisfação, pois demonstrava o quanto ela estava se dedicando e o quanto acreditava em seu trabalho. Ela sempre foi verdadeira à fotografia. A fotografia nunca foi verdadeira à ela.

A pequena sala de estar, conjugada à uma cozinha americana, virou um pequeno espaço de exposição. Fiquei surpreso com o jogo de cores e luzes que ela criou no ambiente, para dar evidência aos principais aspectos das fotos. Algo muito bem planejado e com um resultado absolutamente agradável. Com uma voz repleta de orgulho, ela disse uma frase que continha uma palavra que me agrada os ouvidos como poucas: “estou virando uma boa auto-didata”. E este orgulho tinha uma causa importante. No início de seu trabalho, fui enfático ao dizer: “Estudar, muitos estudam. Portanto, o diferencial do artista não é o estudo, é a verdade. Talvez o grande charme esteja em não estudar e fazer da forma mais natural possível. Para os que tem dom, será uma arte bela. Para os que não tem, será uma mensagem verdadeira, o que é tão belo quanto a arte.”

E a prática insistente durante 5 anos transpareceu uma evolução gritante. Do auto-retrato para a verdade forçada, para a quase verdade, passando pela verdade, chegando à bela verdade. Ela fotografa a sua verdade de forma bela porque o que vê é belo. A evolução, portanto, não está em sua fotografia, mas em sua visão. Não é lindo?!

Me ofereceu um copo de mate gelado para espantar o calor do verão e desceu a escada para seu novo cômodo no sub-solo. Eu caminhava ao longo da sala, contemplando a maturidade de seu trabalho, imaginando como aquele jogo de luzes funcionaria à luz do sol. Ouvi sua voz me chamando lá de baixo e senti aquela apreensão que não se explica, aquele nervosismo infantil diante de uma situação que seria absolutamente natural há alguns anos.

Ao pisar o último degrau da escada, percebi o calor quase insuportável da sala escura e me perguntei como uma pessoa conseguia trabalhar ali. Passei o olho pelo varal, pelas tinas, por uma longa bancada de madeira que corria por três quartos da largura do cômodo. Tudo isso tingido pelo vermelho típico dos ambientes de revelação analógica. Recostada na bancada, estava ela, apenas com a pele do corpo, com o cabelo moreno parcialmente molhado pelo suor que lhe escorria por todo o corpo. O suor era fruto não só do calor do ambiente, mas de seu pânico diante daquela situação. Eu a conheço e sei que ela estava com um pavor irremediável da minha reação diante de sua atitude. Alguns julgamentos me passaram pela cabeça no espaço de poucos segundos. É uma armadilha; Ela continua exibicionista; Ela está me testando.

A luz vermelha varreu minha enxurrada de julgamentos e carregou meu olhar para aquele corpo tingido de um coral molhado, reluzente. Era impressionante como aquele ambiente me remetia ao tradicional conceito de inferno da sociedade ocidental. Calor, fogo, vermelho, suor e um olhar provocante em tons de escarlate. No momento, me questionei como pode alguém julgar a luxúria como um pecado, atribuir a ela uma conotação negativa. Não há sentimento mais nobre, belo, prazeroso, verdadeiro, artístico; portanto divino; do que a luxúria. Mas esta questão logo me fugiu à mente em virtude daquela cena única que estava presenciando. Não foi preciso que ela dissesse nada para que eu me aproximasse e sentisse o calor de sua respiração irracional e de minha respiração que rebatia em seu corpo e naquela atmosfera vermelha.

Nenhuma fotografia no mundo consegue captar o significado de um toque em um corpo rubro, ensopado de suor, nem a troca de olhares rubros dentro do “inferno”. Mas é uma pena que ela não tenha sido capaz de fotografar as horas que passamos ali dentro. Seria a verdade mais bela que ela poderia clicar ao longo de toda a sua vida. O efeito natural da lente da câmera embaçada seria merecedor de prêmios internacionais.

8 comentários:

  1. Gostei...=)
    Me lembrou um pouco de mistura do Milan Kundera com Rubem Fonseca...
    Lendo fiquei pensando em várias coisas como... realmente é impossível fotografar aquilo que se sente , mas se conseguisse, imagina como as pessoas iam começar a viver?? algumas já vivem retornando ao passado, imagine retornar ao sentimentos vividos... q problema!
    Pelo menos fica a fotografia como marca de um momento, ao qual sentimentos e sentidos só vc poderá colocar ou quem a vê... relembrar ou repensar em coisas guardadas...
    E a outra coisa que fiquei pensando é sobre a verdade...em como ficamos presos a essa palavra de diversos conceitos... me veio a cabeç na hora que eu li que a verdade só aparece para os que querem enxergar... por isso cada tem a sua. Mas, ao mesmo tempo, pensei que é extremamente relativo pensar na verdade e na construção que fazemos dela em relação a algo ou a nós....ihhhhh...acho q que começei a viajar aqui...tá bom por hj!

    ResponderExcluir
  2. Muito bom trabalho!!
    Keep on posting, plz.

    ResponderExcluir
  3. É, eu gosto muito de ler e aprecio coisa boa. Vim parar no lugar certo. Excelente narrativa, ela prende. Tenho um trilhão de coisas para fazer no trabalho, cheguei e pensar em parar de ler no meio do texto, mas não resisti e li até o final. Tá aí o segredo de uma boa leitura. Parabéns!

    ResponderExcluir
  4. Riccioppo! Que bela surpresa!
    Narrativa delicada e fluida, compondo detalhes de uma realidade quase palpável. Fiquei eu com calor no final ;p

    ResponderExcluir
  5. Opa! Acompanharei os próximos capítulos : )

    Eu tenho um blog tb, beeeem diferente do seu.

    Beijo

    ResponderExcluir
  6. Bem diferente do que eu esperava. Surpreendente, portanto, e realmente muito bom. É, como opina o narrador, independente de teorias ou detalhismos e rebuscamentos, efetivo no seu propósito. Pra mim, equivalente a ótima leitura, prazerosa e, curiosamente, familiar. Abraços!
    Branca.

    ResponderExcluir
  7. O que não fazem meros 6 anos de maturação à uma boa safra hein..

    Tempo suficiente para encorpar, para que o buquê de experiências e sentimentos seja definitivamente incorporado e garanta uma personalidade ainda mais marcante.

    Que os anos continuem provocando este efeito, meu Caro Amigo.

    À Votre Santé!

    ResponderExcluir
  8. Eu acho meio esquisito comentar no próprio blog, mas não posso deixar de fazê-lo.

    Após ler uma série de comentários de diversas pessoas que moram naquela parte do cérebro que você aciona para dar o seu mais belo sorriso, confesso que fiquei - sem exagero - emocionado.

    Uma verdadeira seleção de pessoas especiais e um comentário mais gratificante que o outro.

    Muito obrigado. Muito obrigado mesmo!

    ResponderExcluir