segunda-feira, 23 de março de 2009

Capítulo 4

Um certo filósofo, certa vez, utilizou o termo “experiência preexistente” para descrever um conceito muito simples: Quando você nasce e abre os olhos, já tem plena consciência de que o mundo é mundo. E eu fico espantado com o quanto eu concordo com alguns filósofos e discordo dos mesmos filósofos que eu concordo. Ou concordava.

Foi bom, como sempre é bom, acordar sem barulho de despertador, sem ser forçado a acordar. É como se fosse um parto normal, no qual ninguém te impõe a hora de nascer. Quem nasce de parto normal toma plena consciência de que o mundo é mundo antes de nascer. E quando nasce deve pensar: “Ah... então é isso que é o tal do mundo.”. Eu nasci de cesariana, odeio ser acordado, e talvez não tenha tomado plena consciência do mundo antes de nascer. Minha experiência preexistente foi interrompida prematuramente. Uma pena. Às vezes eu desejo ter um pouco mais de consciência do mundo.

Neste dia, por acaso, eu fui acordado. Mas não odiei, porque fui acordado como num parto normal. Já teve seu sonho bom repentinamente interrompido? Você passa uns 10 segundos ou uns 15 minutos sem identificar muito bem o que é sonho e o que é realidade. A sua experiência preexistente não é concluída antes de você acordar. Mas neste dia, o que o torna um dia histórico foi o fato de eu ter acordado por um gesto que fez com que meu sonho continuasse. Não sei se estava sonhando com o que ia acontecer ou acontecendo com o que ia sonhar. Só sei que o gesto que me acordou era o gesto com o qual eu sonhava naquele exato momento.

Um certo filósofo grego, há pouco mileniozinhos atrás, falava – dentre outros milharezinhos de coisas – da eterna oposição humana entre racionalidade e sensibilidade. “Oposição” é modo de dizer, porque a razão deste tal filósofo baixava o cacete em sua emoção todo santo dia pela manhã. Eu, filósofo que não sou, prefiro falar em equilíbrio entre racionalidade e sensibilidade. Preferia.

De olho fechado, eu via (e não é um cliché poético) as listras amareladas na parede oposta do quarto, causadas pela persiana que barrava o solzinho da manhã e davam um colorido diferente às fotografias expostas por todo o quarto. Num primeiro momento, achei o efeito feio. Fotos metade claras, metade escuras. Nada parecido com o louvável jogo de luz da noite anterior. Mas por acaso atentei para a foto da menina recém-nascida fazendo careta diante de uma flor. A luz iluminava a flor e escurecia o bebê. Na foto intitulada “medo do cão”, o cão que pulava quase sorridente era iluminado, enquanto o senhor à sua frente, em total pavor, dava um passo desajeitado para trás na penumbra da persiana. Não devia ser por acaso.

Entretido neste jogo de luz e sombra, percebi a mão muito leve que repousava sobre minha barba. Ainda concentrado nas fotos, fui sentindo um peso maior da mão escorregando lentamente sobre meu pescoço e peito, até descansar um pouco acima do meu umbigo.

- Bom dia.

A vista que tinha de olhos fechados era exatamente a mesma que contemplei logo ao abri-los. O que vi ao olhar pro lado era algo que não poderia ver nos sonhos bons: Aquele sorriso levemente coberto pelo cabelo todo bagunçado.

O sorriso se transformou em espanto quando saltei da cama de joelhos e escancarei as persianas. Ela ia perguntar algo quando foi subitamente interrompida:

- Já que a luz ilumina o sensível e deixa à sombra o racional, façamos amor no claro. Muito claro!

A princípio, ela achou que eu ainda estava sonhando, mas logo percebeu que eu acabara de concluir minha experiência preexistente.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Capítulo 3

De repente, num passo, o pé direito ficou mais leve que o esquerdo. Bem mais leve. E à medida que eu caminhava, um pé ficava mais leve que o outro. Até que os dois ficaram leves demais. Mas eu não voei, porque eu não sei voar. Pelo menos não com os pés. Ao contrário, eu caí exatamente no momento em que o corpo ficou tão leve quanto o pé esquerdo, que estava – naquele momento – mais leve que o direito.

Todo ser humano sofre. Na verdade, todo ser vivo sofre. Mas o ser humano sofre em dobro, porque inventou a palavra “sofrimento” para designar um negócio chamado sofrimento. O jovem indiano que apanha todo dia de seus colegas de escola e já foi vítima de todo o tipo de doença, a última delas a leucemia, sofre. Ou sofria. A menina quase rica que deseja trocar seu Fiat Punto por uma BMW e recebe um não de seu pai sofre. Eu sofro por meus motivos, que estão muito mais próximos da futilidade da menina do que da leucemia do pequeno indiano. Mas nós 3, em algum momento, tomamos consciência de que estamos sofrendo. E isso nos faz sofrer mais.

Um peixinho dourado, blasé, dentro de um aquário, por motivos desconhecidos, deve sofrer ao longo dos seus meses de vida. E quando sofre, dentro de seu sistema nervoso desconhecido, ele deve “pensar”: glub! E sua vida segue menos sofrida até que ele tenha um outro motivo desconhecido para sofrer e o resolva com um outro glub.

Há alguns poucos anos atrás ela deixou, acidentalmente, um cachecol verde jogado em cima da minha cama. Nunca mais voltou para buscá-lo. E eu nunca a avisei que o cachecol havia ficado em casa, mesmo depois de ter devolvido tudo mais dela que havia por aqui, acidentalmente. A única coisa não acidental nessa história toda foi o fato de eu não ter devolvido, até hoje, o bendito cachecol.

Há alguns meses a gente estava sem ver e sem se falar. A última vez que nos falamos não trazia boas lembranças, nem pra mim, nem pra ela, nem para as testemunhas. E num domingo acidental, tomando café da manhã na padaria, batendo um papo acidental com o Cido, o balconista, ela passou acidentalmente pela calçada, com um fone de ouvido e um sorriso daqueles que não são momentâneos. Um daqueles sorrisos de quem está feliz. Eu sou capaz de descrever exatamente cada peça de roupa que ela estava usando naquele momento, bem como seus óculos e seus brincos, só com a memória dos quatro ou cinco acidentais segundos sobre os quais ela desfilou sobre a calçada estreita da padaria. Mas prefiro não fazê-lo, para não despertar a consciência humana do sofrimento. Passei alguns segundos paralisado no banco, debruçado no balcão, tomando cada vez mais consciência da palavra sofrimento. Fui interrompido pelo Cido, que acidentalmente perguntava se eu queria mais um pingado, enquanto pingava água salgada no balcão.

O cachecol eu deixei guardado na última gaveta do meu armário, sob uma enorme pilha de roupas que eu não uso e nunca vou usar. Em alguns segundos, todas elas estavam jogadas no chão, enquanto o cachecol repousava sobre a minha mão, leve como o sofrimento. Talvez a maior besteira que eu tenha feito nos últimos anos foi tê-lo trazido para perto do nariz para saber se ainda conseguiria sentir o cheiro dela. Nesse momento eu desejei ser um pequeno indiano, apanhar todos os dias e sofrer de leucemia.

Um passo após o outro, cada vez mais leve. A minha consciência do sofrimento sugava todas as energias do meu corpo e fazia meu caminhar quase levantar vôo. Mas o peso na cabeça me impedia de sair do chão e me empurrava cada vez mais para baixo. Temia que meus pés fracos não sustentassem este peso. Num último esforço besta de tentar retomar a força do corpo e aliviar o peso da cabeça, eu pensei: Glub! E desabei, sem consciência de sofrimento nem de coisa alguma.

Penso que temos muito a aprender com os peixinhos.